sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

ALUMIA-SE O INTERIOR DE UM ABISMO

Passou a vida a ter vontade de morder aquela mão que lhe tapava a boca.
E querendo morde-la foi obrigado a beijá-la.
Ter mentido é ter sofrido. O hipócrita é um paciente na dupla acepção da palavra; calcula um triunfo e sofre um suplício. A premeditação indefinida de uma ação ruim, acompanhada por doses de austeridade, a infâmia interior temperada de excelente reputação, enganar continuadamente, não ser jamais quem é, fazer ilusão, é uma fadiga. Compor a candura com todos os elementos negros que trabalham no cérebro, querer devorar os que o veneram, acariciar, reter-se, reprimir-se, estar sempre alerta, espiar constantemente, compor o rosto do crime latente, fazer da disformidade uma beleza, fabricar uma perfeição com a perversidade, fazer cócegas com o punhal, por açúcar no veneno, velar na franqueza do gesto e na música da voz, não ter o próprio olhar, nada mais difícil, nada mais doloroso. O odioso da hipocrisia começa obscuramente no hipócrita. Causa náuseas beber perpetuamente a impostura. A meiguice com que a astúcia disfarça a malvadez repugna ao malvado, continuamente obrigado a trazer essa mistura na boca, e há momentos de enjôo em que o hipócrita vomita quase o seu pensamento. Engolir essa saliva É coisa horrível. Ajuntai a isto o profundo orgulho. Existem horas estranhas em que o hipócrita se estima. há um eu desmedido no impostor. O verme resvala como o dragão e como ele retesa-se e levanta-se. O traidor não É mais que um déspota tolhido que não pode fazer a sua vontade senão resignando-se ao segundo papel. É a mesquinhez capaz da enormidade. O hipócrita éÉ um titã-anão.
Clubin imaginava de boa fé que tinha sido oprimido. Por que razão não nascera rico? O que ele queria era que os pais lhe houvessem deixado 100.000 libras de renda. Por que não as tinha? Não era culpa dele. Por que motivo, não lhe dando todos os gozos da vida, forçaram-no a trabalhar, isto é, a enganar, a trair, a destruir? Por que motivo condenaram-no assim a essa tortura de adular, de rastejar, de comprazer, de fazer-se amar e respeitar, e trazer dia e noite no rosto um rosto que não era dele? Dissimular É uma violência imposta. Odeia-se diante de quem se mente. Soara enfim a hora. Clubin vingava-se.
De quem? De todos e de tudo.

(...)Vingava-se de todos aqueles ante quem foi obrigado a constranger-se. Desforrava-se. Quem quer que pensasse bem dele, era seu inimigo, porque ele foi cativo desse homem.
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(...)Erupção de um hipócrita, não há rompimento de cratera igual a esse.
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(...)Estas idéias em um hipócrita parecem contradição, e não são. Toda a infâmia é conseqüente. O mel é fel. Escobar confina no Marques de Sade. Prova: Léotade. O hipócrita, sendo perverso completo, tem em si os dois pólos da perversidade. De um lado é padre, do outro cortesão. O seu sexo de demônio é duplo. O hipócrita é o horrível hermafrodita do mal. Fecunda-se a si próprio; gera-se, transforma-se. Queres vê-lo formoso? Olha-o. Queres vê-lo horrível? Vira-o.
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( Victor Hugo- Os trabalhadores do mar)